sexta-feira, junho 30, 2006

RETALHOS - A sabotagem (fim)

“ – Aguarde uns minutos, pode ser que tenhamos sorte com o próximo.”
E naqueles dois ou três minutos de espera ainda dentro do táxi, confessou-me que também tinha um filho em Angola, que entendia muito bem a vida de um militar e que me ia ajudar esperando o tempo que fosse necessário.
Era muito raro, uma família não ter nenhum dos seus membros no ultramar e nas agruras da guerra.
Por sorte a sentinela que entrara agora de serviço, era da minha camarata. Este sabia que eu estava ausente sem autorização, mas percebia as razões pois tinha sido um dos que me dissera para aproveitar estes meses nas calmas. Fez-me sinal para entrar e ao passar por ele, quase em surdina me avisou:
“ – Nosso Pára, vá de imediato guardar o saco pois vai haver mais uma chamada para confirmar as presenças”.
“ – Obrigado nosso cabo, Deus lhe pague” – manifestei logo ali o meu sincero agradecimento.
“ – Não perca tempo e não se preocupe porque não está em falta, o seu amigo alentejano ontem respondeu por si.”
Claro que fui dar um abraço sentido ao, muito recente, amigo alentejano que demonstrou a todos o valor da amizade. Com um gesto mostrou que vale a pena sentir a felicidade de poder contar incondicionalmente com alguém. Soube estar presente, adivinhando a minha dificuldade e fazendo da amizade um ponto positivo na vida.

RETALHOS - A sabotagem (V)

Ao fim de quatrocentos quilómetros e de nove horas intermináveis, desembarco na estação de Santa Apolónia em Lisboa, por volta das sete da manhã. O dia estava bonito, o sol a despontar e uma pequena brisa trazia a maresia salpicada com o bafo do Tejo ali mesmo ao lado.
Com as pessoas ainda ensonadas e taciturnas, Lisboa já começa a formigar. Os comboios descarregavam os passageiros nas estações. Os barcos, que antes tinha ajudado a construir nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, vindos da outra margem desaguavam no cais. As camionetas despejavam os seus utentes no Campo das Cebolas. O Metro e os Autocarros transportavam esse formigueiro de pessoas para os seus empregos.
Uma vez chegado, meto-me num táxi e digo ao taxista:
“ – Para Monsanto por favor, para a Policia Aérea.”
Ainda à civil rumo á Serra de Monsanto de forma a tentar entrar sem dar nas vistas no quartel. Pelo caminho vou conversando com o chauffeur, dando-lhe conta da minha situação e tentando ganhá-lo. Fui mudando de roupa pelo caminho e na subida para Monsanto, numa zona mais arborizada e deserta, comecei a mudar de calças. O homem do táxi, com cara de gozo, diz-me:
“ – Ó pára-quedista, mude de calças rápido pois se alguém o avistar de calças na mão, ainda passamos por paneleiros” – mesmo troçando da situação, o homem tinha razão, dois homens em Monsanto e um a mudar de roupa…
Completei a muda, fiquei de farda azul vestida e de boina verde. Eram quase oito horas da manhã e ainda de dentro do táxi vi quem estava de sentinela à porta de armas, e para mal dos meus pecados, não me era familiar o sentinela.
Como estava na hora de mudança das sentinelas, foi o bom do taxista, que se tornou meu cúmplice e me disse:

RETALHOS - A sabotagem (IV)



A notícia colheu meio mundo de surpresa. A BA3 era o maior complexo militar da Força Aérea sendo uma base de aviação de ligação, transporte e treino de tropas pára-quedistas, para além de ser uma unidade também de treino dos pilotos para a guerra colonial.
Fora ali desencadeada pela ARA (Acção Revolucionária Armada) uma acção com vinte cargas explosivas e incendiárias em vinte aviões e helicópteros. Para afrontar o regime e logo num santuário militar por excelência, infringindo pesadas baixas materiais em aviões de guerra bastaram três homens: um cabo miliciano, militar no activo precisamente na base de Tancos e quase a completar o curso de piloto de helicópteros dado por instrutores franceses; um ex-furriel enfermeiro militar com a especialidade de neuro-psiquiatria, com quase três anos de serviço em Moçambique donde tinha regressado em Março de 1969 e onde assistiu, impotente, às mortes e às vidas estropiadas por feri­mentos sem remédio de muitos combatentes involuntários; e o mais velho, 28 anos de idade, que também esteve na acção do Cunene, tendo sido soldado de uma companhia de caçadores conheceu em Angola, Ambriz e Lundas.
Às dez menos dez da noite, já estava na estação de comboios a comprar um bilhete, mas sem utilizar o “privilégio” de ser militar. Pagava mais caro, mas desta vez ia vestido à civil por ser mais seguro. Embarquei, não se via um militar fardado no comboio, por ser um dia de semana. Passei a noite de terça para quarta-feira, de 9 de Março de 1971, – precisamente no dia de aniversário de minha mãe deixando-a mais uma vez aflita – dentro de um comboio, mas desta vez não ia encafuado como em tantas outras viagens de fim-de-semana. Havia lugares sentados e desta vez, sentia-me mais cidadão, com mais direitos e olhado de forma diferente pelas pessoas.

RETALHOS - A sabotagem (III)

“- Zé, venha cá depressa” – meio assustado e meio atónito pela forma como ela me chamou, pensei logo que íamos ter chatice.
A primeira frase que me veio à cabeça foi: “calma se’Maria, eu quando vier da guerra caso com a sua filha”.
“- Olhe e veja esta notícia na televisão, parece que há problemas na Força Aérea” – respirei de alívio, afinal, não era por causa da filha, nem pelos nossos devaneios.
Apesar deste alívio momentâneo, fiquei bloqueado não conseguindo entender muito bem o que se passava nem ouvir o que ela dizia e perguntei-lhe:
“ – Diga lá o que se passa, não consegui perceber o que aconteceu” – ela olhou-me com cara de mulher avisada, mostrando-me uma cara que não sendo de tolerância, também não era de recriminação e disse:
“- Espere que vai dar outra vez a notícia, mas parece-me que é coisa grave” – enquanto olhava para a filha, mirando-a e recriminando-a com um olhar penetrante, abanando ligeiramente a cabeça, deixando-a completamente gelada.
Comecei a ficar tenso, pois as notícias sobre a Força Aérea eram graves e eu era um militar no activo, mas “desenfiado” em casa. Foram segundos intermináveis que me deixaram bastante nervoso, até começar o telejornal da RTP do estado: SABOTAGEM NA BASE AÉREA Nº 3 DE TANCOS era a notícia de abertura.
“ – Ai minha Nossa Senhora D’Aparecida!” – dizia a velhota.
Dei um beijo à minha namorada, pela primeira vez em frente da futura sogra, e disse-lhes:
“- Não há-de ser nada, mas eu vou ter que ir já embora. O meu quartel, como era de esperar, também entrou de prevenção e eu estou aqui desenfiado.”

RETALHOS - A sabotagem (II)

Enquanto isso, nos Estados Unidos, meio milhão de pessoas marchava contra a Guerra do Vietname em Washington. Uma guerra injusta, em que os USA se envolveram no conflito a pretexto de um ataque norte-vietnamita aos seus navios USS Maddox e USS C.Turney Joy que patrulhavam o golfo de Tonquim, em Julho de 1964. Hoje, sabe-se que o ataque foi uma farsa do governo estado-unidense para ter um pretexto de intervir no Vietname. O Povo levantou-se contra uma guerra em que os vietnamitas tiveram de suportar baixas e bombardeamentos terríveis. Entre os militares americanos, 57 939 perderam as suas vidas.
Hoje, sabe-se também que, na guerra em África, Portugal apenas com 10 milhões de habitantes onde entre os anos 60 e 74 emigrou um milhão e meio de portugueses, fez um esforço cerca de nove vezes superior ao dos EUA, no Vietname, que possui 250 milhões de habitantes. Portugal mobilizou para a guerra do ultramar mais de 800 mil jovens, teve 8 mil mortos, 112 205 feridos e doentes, 4 mil deficientes físicos e estima-se que haja cerca de 100 mil doentes de stress de guerra. À defesa era destinado 40 % do Orçamento de Estado.
O mundo acordava. Os povos dos países fazedores de guerras e que tinham liberdade… protestavam contra todos os Vietnam’s, outros levantavam-se em armas e tudo faziam para alertar consciências, minando e sabotando os regimes.
Perante este cenário de guerra, eu, como tantos outros, sabia o que nos esperava. O grupo dos quatro tentou passar o tempinho que restava junto da família, das namoradas e dos amigos.
No fim de tarde, de 8 de Março de 1971, no átrio junto à soleira da casa da minha namorada, com a sogra debaixo de olho, estava eu namorando e gozando um pouco tentando afogar os desejos e os prazeres de dois jovens. Nestas alturas, as namoradas eram mais permissivas sabendo que ao contrário do slogan da época balnear “há mar e mar, há ir e voltar” o lema era: “há mar e ultramar, há ir e será que há voltar?”. Mesmo com a sogra do outro lado da porta entreaberta velando ou fazendo que o fazia, já o fogo nos consumia, levando-nos onde o amor, a paixão e o desejo podia levar. Não havia muitas formas de apagar o incêndio senão fundindo os corpos. Estávamos nós já na fase de rescaldo e sem ainda ter avaliado os estragos quando a sogra Maria, que não era Maria, me chamou quase gritando:

RETALHOS - A sabotagem (I)

Como era o mais antigo, decidi entrar logo de serviço ou de prevenção vinte e quatro horas por dia, naquela semana. Se não houvesse embarques para África o trabalho era quase nulo ou rotineiro. Os focos de problemas só surgiam ao fim-de-semana e as saídas de ronda pela capital eram normalmente tidas como efeito dissuasor.
O facto de sermos uma Policial Militar em tempo de guerra, permitia-nos, quando em serviço, ter acesso a todos os locais públicos sem qualquer tipo de impedimento ou constrangimento.
Assim, pela primeira vez e até hoje a única, fui assistir a uma sessão de stripteaser, no Hotel Ritz que ficava ali sobranceiro à rotunda do Marques de Pombal. Para mim era uma autêntica novidade. Apesar de não ser oriundo de uma aldeia dos confins da serra, a minha cidade, ainda hoje pacata, não era dada a essas modernices de então, sendo coisas só da capital e das grandes cidades. Não nego que algo em mim acelerou quando as luzes baixaram e se ouviu a música acompanhada da actuação de uma das mulheres, onde todos os olhares se concentraram. A mulher entrou com um cigarro aceso entre os dedos, caminhando docemente para captar a atenção dos espectadores. O seu dançar sensual, o despir atrevido, o seu corpo mantido em forma, sem sacrifício, mostravam uma mulher normal, não muito bonita, mas muito feminina. Era capaz de provocar muitas sensações ao bambolear as ancas, ao roçar-se no poste ou ao deitar-se lânguida no chão e a abrir as pernas... Imaginei que ela se aproximava da minha cara e sentia o seu cheiro, como ela o fez, durante a actuação, junto de caras desconhecidas. A avaliar pelas suas expressões cheiraria bem a vulva e saberia melhor, a avaliar pelo aspecto de alguns. A dançarina sabe o que vale, sabe o que provoca, mas não dá a quem quer.
Aqui não se podia “despir” a farda, nem sequer mostrar as emoções. Éramos quatro militares, fingindo ser assexuados, que se passeavam por detrás da plateia, simulando espreitar alguém fardado por perto. Era um olho no pau, outro no cigano.

quarta-feira, junho 28, 2006

A velha Ponte Eiffel de Viana do Castelo

Os carros podem não voltar a circular na velha Ponte Eiffel de Viana do Castelo. Fonte do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) disse ao Correio da Manhã que os problemas detectados recentemente em dois dos pilares podem levar ao encerramento definitivo da ponte, incluindo o tabuleiro ferroviário.


Já foi informado o Ministério das Obras Públicas acerca dos graves problemas de segurança que afectam a velha ponte metálica, projectada pelo engenheiro francês Gustave Eiffel e inaugurada faz na próxima sexta-feira 128 anos
Além da corrosão das vigas principais, que obrigou à realização das obras iniciadas em Janeiro e à análise de toda a estrutura do tabuleiro (que ontem começou), há dois pilares em risco de colapso, ao que tudo indica devido à extracção, muitas vezes ilegal, de inertes no rio Lima e que pode obrigar ao fecho da ponte à circulação de comboios.
O assunto vai ser debatido na próxima segunda-feira, em que vão participar o governador civil, o presidente da Câmara e o secretário de Estado das Obras Públicas.
Nessa reunião, Paulo Campos deve fazer um ponto de situação acerca do real estado da ponte e, no caso de a solução passar pelo seu encerramento definitivo a carros e comboios, dar nota de soluções alternativas.
Se a ponte não tiver remédio, é natural que o Governo não avance com a construção de uma nova travessia antes da conclusão dos estudos relacionados com o futuro TGV, entre o Porto e Vigo.A Comissão de Utentes da Ponte Eiffel acusa o Estado de “negligência grosseira” e ontem, em conferência de imprensa, anunciou que “se os trabalhos não terminarem a 31 de Julho, como o previsto, entra em Tribunal uma queixa contra o Estado”.
A Comissão de Utentes mostra-se revoltada com os atrasos nas obras e, sublinha o seu presidente, Arménio Belo, que “há mais de seis anos que foram dados os primeiros alertas de degradação da ponte e, por negligência, nada foi feito”.

Grávidas em Badajoz


"para todos os efeitos, a ida das grávidas para Badajoz é um acto voluntário. Não são obrigadas a escolher esse hospital "

sábado, junho 24, 2006

RETALHOS - O princípio do fim III (fim)

Naquela primeira semana, saí para a rua com mais 4 PA’s. Utilizávamos um unimogue que mais parecia uma pandeireta, dando sinais sempre que o condutor se deliciava a fazer perícias. Dar uma cambalhota e projectar-me, não para casa desenfiado, mas para a enfermaria com o chassis feito num oito, era sempre o mais provável.
Onde houvesse cheiro a militares da força aérea, lá estávamos nós para manter e impor a ordem, como se de um embarque, de militares para África, se tratasse.
Na segunda saída, calhou-me logo acompanhar um embarque no aeroporto. Tratava-se do pessoal da minha companhia que comigo andara, sofrera e vencera em Tancos.
“Nosso Pára, não dê confiança aos militares. Lembre-se que a você compete-lhe manter a ordem e a lei” – atalhou o comandante da ronda, um furriel todo emproado.
Mas qual quê, os camaradas de tantas privações passadas, mal me viram com o braçal da Policia Aérea, arrancaram-me da minha pose policial. Vi-me envolvido no meio deles confraternizando e dando a cada um, um abraço de despedida. Só lhes faltou, para desespero dos restantes PA, lançaram-me ao ar em tremenda gritaria. Ainda bem que imperou o bom senso. Ri, bebi, chorei e até embarquei com eles, pois o meu coração e um pedaço de mim, também iam para a Guiné.
Quando os vi na placa de embarque, a decisão ficou tomada: iria para casa sim senhor, mal me pudesse escapar desenfiar-me-ia. Que me poderia acontecer de fosse apanhado? Algum castigo era superior ao destes meus amigos que agora partiam? Sabia que nem todos iriam regressar e muitos dos que voltassem viriam com problemas de vária ordem na mente e nos ossos. Sabendo que militar é sinónimo de desenrascar, assim que chegasse ao alto de Monsanto, iria acertar isto com os meus camaradas: três de nós, iriam de férias

quarta-feira, junho 21, 2006

RETALHOS - O princípio do fim II


Aproximaram-se os novos colegas da polícia e militares da Força Aérea, e um deles ajudou à missa dizendo:
“ – Nosso Pára, aproveitem. Já os outros que cá estavam faziam o mesmo. Esta tropa é para se fazer nas calmas… enquanto cá estão aproveitem.”
O Araújo, sujeito aparentemente bonacheirão, mas vivaço e sempre pronto a tirar proveito das situações, atirou logo de rajada:
“ – Tendes medo? Eu para a semana fico já em casa e que se foda a tropa.” – tentando tirar vantagem do facto de ficarmos surpresos com esta benesse que não lembrava ao diabo.
Eu tinha o exemplo do meu mano mais velho, que num quartel do exército em Sacavém, volta e meia, se desenfiava com a maior impunidade. Só agora, compreendia realmente como estas tropas, em África, eram presa fácil e o termo “carne para canhão” se aplicava com toda a propriedade.
Lembrei-me logo dos relatos feitos por aqueles que regressavam da guerra. Diziam eles, que mal uma companhia do exército era colocada no seu aquartelamento, era certo e sabido que nos primeiros dias os “turras” caíam-lhes em cima, flagelando-os sem piedade.
“ – Ó Afife, tem calma. Esta merda, não é à medida do freguês” – disse eu dirigindo-me ao Araújo. Era assim que eu o tratava por ser de Afife, terra do poeta Pedro Homem de Melo.
“ - O Furriel disse o que disse, mas nós não vamos pelo diz que disse. Se a velhice é um posto… eu sou o mais velho. Portanto, tem calma, temos toda a semana para pensar e não nos vamos meter em alhadas”.
Aquela cara de menino bonacheirão, virou, como por encanto, cara de menino amuado a quem lhe foi sacado o “brinquedo”. Esquecendo-se que o brinquedo, num instante, se poderia transformar, se algo corresse mal, num mandato para a “casa da rata” - assim era denominada, entres os militares, a prisão.
É evidente que aquela proposta me ficou a martelar nos ouvidos e pensando bem, não era de desperdiçar. Já bastava desperdiçar os meus melhores anos e arrancarem-me da minha cidade pacata - Viana do Castelo. Aqui, o mar combina na perfeição com a montanha. O estuário do rio Lima, outrora o rio do esquecimento, é de uma beleza única vagueando aos pés de Santa Luzia. As duas margens são ligadas por uma ponte metálica obra de Gustav Eiffel - o criador da torre Eiffel em Paris - que em Viana do Castelo também deixou a sua marca.

sábado, junho 17, 2006

RETALHOS - O princípio do fim I

Ao fim de oito meses de instrução e preparação, para uma guerra algures em África, apercebi-me, desde o primeiro dia, que este destacamento para a polícia podia ser como umas férias merecidas. Antes que a guerra tomasse conta de nós, esta era a última oportunidade de respirar a liberdade e apreciar a capital histórica de melancólicos encantos e grande beleza. Os seus bairros medievais de Alfama e Mouraria, o Bairro Alto e a Madragoa, com as suas ruas típicas, dão um toque tradicional e folclórico devido aos seus casarios.
Na primeira semana, fiquei espantado e atónito com as facilidades que dispunham outras armas, das mesmas forças armadas, e para as quais não estava minimamente preparado. Espantoso isto. O regime, a que vinha habituado, era extremamente rigoroso. Não havia lugar a cansaço nem a adormecimento na forma, quanto mais poder-me “desenfiar” do quartel e regressar 3 semanas depois, como se nada tivesse acontecido. Em tempo de guerra fui afeito e formado a nunca transgredir em qualquer situação, a cumprir sem regatear ou sequer questionar qualquer ordem ou dever. Um dia, tive de dar uma marrada sem capacete, numa árvore, caindo como um tordo, só porque o sargento entendeu punir-me, para exemplo de todos, a pretexto de algum abrandamento meu. De uma outra vez, já no fim do curso de combate, depois de uma marcha de 40 quilómetros, durante 4 horas, com botas calçadas e transportando o restante equipamento, chegámos completamente exaustos, esfomeados e sedentos. No refeitório, em vez de uma suculenta refeição para repor o que aquela estafa nos tinha levado, encontrámos, em cima das mesas, um papel em forma de cavalete dizendo: ”isto é a vossa refeição!”.
Chegou, junto de nós, um furriel, sem qualquer postura militar, como se de um civil se tratasse. Depois das apresentações da praxe foi dizendo-nos:
“- Vocês, aqui, são quatro pára-quedistas e vão estar de serviço, um por dia, às rondas no exterior do quartel, portanto…” – colocando um pé no beliche, continuou:
“ – Dizia eu que, como só precisamos de um Pára-quedista de cada vez. Desde que, aquele que cá ficar, assegure diariamente os serviços de ronda, os restantes podem ir para casa.” – olhámos uns para os outros atónitos, mas sem nos atrevermos a dizer qualquer palavra.
“ – Atenção que esse “desenfianço” é por vossa conta e risco. Eu, não disse nada.”
O Furriel com aquele ar de menino do papá, abandonou a caserna, como se tivesse feito um discurso importante.
“ – Ai que caralho, isto é assim?” – interrogou logo o Fiúza.

quinta-feira, junho 15, 2006

RETALHOS - O princípio do fim

A contestação oblíqua ao sistema colonial, de forma camuflada e sobre a capa de reivindicações laborais é afogada em sangue pelas punições militares e paramilitares. Três manifestações, por melhores salários, acabam em morticínios: a 3 de Agosto de 1959, em Pidjiguiti, na Guiné, cerca de cinquenta estivadores são mortos numa acção reivindicada pelo PAIGC – Partido Africano para a Independência de Guiné e Cabo Verde; em Janeiro de 1960, em Mueda, em Moçambique, as forças coloniais massacram centenas de camponeses; em Janeiro de 1961, na Baixa de Cassange, em Angola, milhares de apanhadores de algodão são chacinados. Tudo isto dá lugar à contestação frontal, a 4 de Fevereiro de 1961, em Luanda. Um grupo de nacionalistas angolanos ataca duas cadeias e o quartel da Polícia Móvel com o objectivo de libertar camaradas presos. Este acto violento de revolta e ao mesmo tempo de reivindicação de angolanidade, simboliza o princípio do fim do “3º Império”, do Império Africano de Portugal.
Precisamente uma década depois, nos primeiros dias de 1971, apresento-me, com o Fuíza, o Araújo e o Fitas, em Lisboa, mais propriamente em Monsanto, no GDACI - Grupo de Detecção, Alerta e Conduta da Intercepção. E ali me é atribuído o nº 4/71 sendo alojado numa camarata com outros militares da Policia Aérea.
Ao sermos apresentados aos colegas da caserna, tomo o primeiro contacto com um ex-combatente deficiente. Este tinha uma prótese que lhe substituía não só a bota, perdida algures em Moçambique, mas toda a perna. Restava-lhe apenas um toco onde se aparelhava o apetrecho que o ajudava a mover-se e a deslocar-se todos os dias para a cidade. Tentava dar um novo rumo á sua vida, já que a morte não o conseguiu derrotar. Era um indivíduo extremamente inteligente. Tentava por outros meios refazer a vida, sozinho, preferindo ficar na capital do que regressar à sua terrinha. Com a anuência do comando do GDACI, ali “morava” connosco como se de um militar ainda se tratasse. Tinha “direito” a alojamento e alimentação e procurava romper na vida como técnico de reparação de rádios e televisões.

quarta-feira, junho 07, 2006

Asneiras do Sargentão

Scolari deve estar consciente de que, se falhar, não serão apenas meia dúzia de intelectuais que o vão criticar. Nesse dia, Portugal ficará repleto de intelectuais. A maioria porque não gosta de perder. Os outros porque até gostariam de o ver perder.

Luiz Felipe Scolari é, na minha opinião, o melhor seleccionador que Portugal alguma vez teve. É experiente, tem currículo e, fundamentalmente, é competente. Mas isto não faz dele um homem imune às críticas, nem muito menos evita que, não raras vezes, faça ou diga asneiras.
Scolari é conhecido desde os tempos em que trabalhava no seu país como o Sargentão. E não é por acaso. À sua evidente competência técnica – comprovada pelos inúmeros títulos conquistados – aliou sempre uma personalidade demasiado vincada, roçando a intolerância perante os seus atletas e os seus críticos. Se, no que toca aos jogadores com quem trabalha, até se compreende que goste de impor um certo rigor militar, já no que diz respeito aos que publicamente discordam das suas opções e opinião nada justifica a forma como muitas vezes reage. São traços de uma certa cultura militar e autoritária, que vigorou no seu e no nosso país durante várias décadas do século passado e que, pelo menos nós, portugueses, não queremos nem aceitamos voltar a viver.
O seleccionador nacional, como qualquer homem livre, tem todo o direito de não gostar das críticas que lhe fazem. Tem ainda mais direito de se defender e confrontar os que o criticam. O que não lhe fica bem é que utilize os termos com que se refere, em
entrevistas aos jornais do seu país, a um leque de comentadores que, cá pelo burgo, teimam em contrariá-lo. Toda a razão que pudesse ter, perde-a no instante em que recorre ao insulto.
Outra asneira recorrente de Scolari é a de pegar na bandeira da discriminação e da xenofobia quando se sente atacado. Dizer que os que o criticam o fazem por ele ser estrangeiro é, no mínimo, ridículo e insultuoso para todo o país que o tem tratado nas palminhas. E quem acusa homens como António Pedro Vasconcelos ou Miguel Sousa Tavares de xenofobia demonstra apenas que ainda não percebeu em que país vive. E já lá vão mais de quatro anos...
O que se pede a Scolari, agora, é que trate de fazer aquilo que sabe. Que se preocupe com a Selecção Nacional e a sua participação no Campeonato do Mundo. É por isso que ele será julgado, sendo que deve estar consciente de que, se falhar, não serão apenas meia dúzia de intelectuais que o vão criticar. Nesse dia, Portugal ficará repleto de intelectuais. A maioria porque não gosta de perder. Os outros porque até gostariam de o ver perder.

Manuel Barros Moura

domingo, junho 04, 2006

Musicalidades...

Música...
Música que tráz...
Música que leva...


Música...
Que convida a dançar...
Que faz vibrar, sentir,
agitar todas as partículas do ser...
...do pensamento!

Música...
Que faz avivar, brotar experiências,
vivências passadas,
adormecidas,
paradas, inactivas!
Experiências, no tempo vividas, sentidas...
Marcas que ficaram gravadas,
algures na memória...

Pela música...
de novo reacendidas, activas!
Despertas... entreolham-se,
entrechocam-se...
Marcas... que o tempo não apagou!

Música...
Que leva para longe...
mágoas que sempre esquecemos...
sempre lembramos!

Música...
Que tráz marcas de outros tempos...
Feridas que o tempo não cicatrizou!
Tempo que, às vezes "mata"...
Tempo que, às vezes "cura"...

Música...
Que faz reviver momentos distantes...
que se perderam no tempo,
no espaço,nos meandros da memória!

Música...
Que tráz o tempo que não acontece...
O tempo que desaparece...
O tempo que tráz...
O tempo que leva...
O tempo que, às vezes,
não chega a tempo...

Música...
Que desperta,que tráz de volta,
que nos diz que estamos a tempo...
de viver o tempo!

Música...
Que nos leva ao tempo que era...
ao tempo que foi...

É tempo de dar tempo...
ao tempo... que teima em não
chegar a tempo!
É tempo de viver o tempo!
Pela Música...essa, sem tempo!
Pela Música... sempre em tempo,
e no tempo!
Pela Música...intemporal!!
É tempo de viver!!


Lila Loureiro
2006, Viana do Castelo

sábado, junho 03, 2006

“Amêndoas Cobertas” de Moncorvo


Quem não gosta de, pela Páscoa, deliciar-se com umas amêndoas doces, de chocolate ou simplesmente cobertas de açúcar de variadas cores? Ou então, as chamadas Amêndoas Francesas que, perdoem-me, de amêndoa nada têm pois é apenas açúcar recheado com licor, mas que deliciam não só pelo conteúdo, mas também pelas formas pouco vulgares que apresentam. Falando em amêndoas, as de Moncorvo, têm a particularidade de serem artesanais, chegando a demorar dois meses a cobrir, o que as encarece quando prontas para degustação, até dos menos gulosos.A sua confecção faz-se em tabuleiros redondos de cobre com cerca de um metro de diâmetro, colocados em cima de potes de barro com borralho (brasas que ardem lentamente). Nesses tabuleiros colocam-se as amêndoas depois de ligeiramente torradas, às quais se vai juntando uma calda de água e açúcar. Aos poucos, as mãos hábeis das artesãs, “ornamentadas” com dez dedais sem cabeça, vão-nas cobrindo lentamente remexendo-as uma e outra vez…Assim vai ficando coberta a amêndoa, tomando uma forma diferente das demais, com pequenas saliências na parte açucarada. São os engraçados piquinhos, como lhe chamávamos no meu tempo de garota. Diziam as pessoas idosas, que as amêndoas só ficavam bem cobertas e deliciosas, quando era adicionada água recolhida na Velha Fonte de Santo António.

É um produto típico muito procurado em Moncorvo não só na Páscoa, mas também quando milhares de turistas visitam esta região para admirarem as amendoeiras em flor.

Assunção Bernardo

quinta-feira, junho 01, 2006

RETALHOS - Não sei para onde vou… mas vou (fim)

Todos os que se apresentaram, formaram na parada do quartel, bem alinhados e disciplinados. Sentiam-se numa antecâmara onde nem todos conseguiam disfarçar uma crescente angústia, como os bois quando se apercebem que vão para o matadouro. Pela memória passavam as imagens tristes que o povo já se habituara a ver na televisão: o navio afastando-se do cais, o choro das mães, as lágrimas enroladas nos lenços brancos da despedida e da incerteza da volta.
O tempo corria depressa neste restinho de liberdade sufocada, da primavera marcelista. Os que não embarcaram para a Guiné foram encaminhados, para outras tarefas.
A semana entre o Natal e o Ano Novo, de 1970, era uma transição para outras paragens. A companhia estava mobilizada para embarcar para a Guiné. A vintena que ficava, iria render os do curso anterior por forma a que estes se juntassem no embarque já aprazado para as primeiras semanas do novo ano.
O 1º sargento Capucho, que nos tinha acabado de ministrar o curso de combate, era um homem aparentemente frágil. Tinha o corpo pequeno e adelgaçado e a tez bem marcada pelas campanhas de África e o sol algarvio. Mancava, ligeiramente, devido a um ferimento em combate, mas isso não o impedia de se colocar a nosso lado em todos os exercícios. Com o seu exemplo, no curso de combate, fez de nós melhores homens, mais fortes, mais determinados e melhor preparados para a vida e para a morte. Foi ele que nos informou, em primeira-mão, o que nos esperava nos próximos tempos até sair a próxima fornada para nos substituir. Depois, todos ou quase todos iriam acompanhar a próxima fornada de combatentes e partir para o ultramar, lá para o verão.
“ - Como a velhice é um posto, vou chamar já os primeiros quatro homens para irem prestar serviço para a PA, em Lisboa, como sabem Polícia Aérea. Certo Patacão?” – disse o sargento Capucho.
“ – Eu na sei nada, meu Sargento.” – respondeu o alentejano nunca sabendo de nada na sua matreirice de chaparro, olhando imediatamente, para mim, atitude que foi acompanhada por todos os demais, como se eu não soubesse que tinha o número mais baixo e portanto o mais antigo.
“ – Parece que sou bruxo” – pensei logo, pois sabia que sendo o mais antigo já me tinha safo, por uma unha negra, de ir bater com os cornos na Guiné mas de ir para as polícias não escapava.
O sargento Capucho, com aquele ar de puto reguila e com a boina atirada um pouco para trás, sacou de uma folha e continuou:
“ - Como vos conheço de ginjeira, vou chamar-vos pelos nomes e dão um passo em frente os soldados: Marques, Casimiro, Araújo e o Fitas”.
Depois de uma breve pausa, para poderemos digerir melhor a informação, acrescentou:
“ - Vão ter que se apresentar no GDACI em Monsanto, a 5 de Janeiro. Os restantes ficarão cá no regimento.” - e foi continuando:
“- O Martins, como tem cara de perdigueiro algarvio, vai tirar o curso de tratador de Cães de Guerra. Estou a brincar contigo pá, também sou algarvio, sei que gostas de cães e tens uma certa feição para lidar com os cães.”
O Martins, não escondeu a sua alegria pois foi sempre esse o seu sonho.
“- Para o refeitório ficam: O Covilhã, o Cunha, o Risotas, o Patacão de um cabrão” – disse com ar de gozo para o bom gigante, continuando a listar mais uns quantos para o refeitório.
E lá foi nomeando, um a um, para os seus novos “empregos”. Quando deu por terminada a atribuição de tarefas, mandou destroçar todos os que iam exercer novas funções, até que chegasse o dia, mais lá para o verão, de sermos todos mobilizados para África. Acompanharíamos o 1º curso de combate de 1971 que agora se iniciava e por lá encontraríamos outros meus patrícios.
“- Do mal o menos, sempre vou para a guerra com mais gente da minha terra.” - Lembrando-me logo do Ramos da Areosa, do Martins de Valença e do Lima da Correlhã.