segunda-feira, setembro 25, 2006

RETALHOS - A Viagem (IV) fim


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A contra gosto lá me levantei. Os camaradas suspenderam a batota e fomos ver o que se passava. Tremenda algazarra com o pessoal do Exército a assistir a uma sessão de batatada no convés entre dois ou três Páras e outros tantos Comandos. Sempre que a rivalidade entre Páras e Comandos conduzia a este tipo de “combates”, o pessoal do Exército regozijava-se pois não gostavam dos Comandos nem pintados. Quando se pressentiu que tudo poderia descambar em algo grave, pois um Pára teimava em empurrar pela borda-falsa o seu adversário, alguém desapertou os contendores e aquilo morreu ali. Se entre marido e mulher não se mete a colher, entre militares não é muito diferente pois ninguém vai fazer queixinhas a seguir. Eu, que estava bem sossegado a ver as “habilidades” dos jogadores da batota no meu camarote, é que acabei por levar por tabela. De repente, como cabo de dia vejo-me a responder pelos actos de cerca de cinco dúzias de pára-quedistas que comigo embarcaram. Como dois ou três, se lembraram de andar à pancada… fui avisado que mal chegasse a Luanda, iria ser responsabilizado pelo ocorrido, por não ter identificado os Pára-quedistas intervenientes.
Como tinha alguma habilidade para o desenho, a pedido de alguns, fui tatuando nos seus braços o emblema dos Pára-quedistas. Assim os dias foram passando numa rotina que me começava a assustar. Já nada nos intimidava nem a viagem nem a guerra que nos esperava. Só nos restava o cansaço, o sono e a saudade. Por isso alguém dizia: “- Já só faltam 104 semanas para regressarmos”.
Foi isso que definiu o nosso objectivo principal e nos norteou todo o tempo: contar semana a semana.
Ao nono dia já se avistava o arranha-céus do Banco Comercial de Angola. O que era um ponto no horizonte, começou a emergir e com ele vislumbrámos a baía lindíssima de Luanda. Quando o Vera Cruz finalmente acostou ao porto de Luanda as tropas desembarcaram e logo, no cais, reparámos num autocarro azul da força aérea, que nos transportou a Belas onde estava instalado o nosso Batalhão de Caçadores Pára-quedistas nº 21.
Já em terra firme, avistam-se os barcos de pesca dos negros, passando lentamente para um e outro lado. Uns pássaros grandes e estranhos que pareciam gaivotas passeiam sem mover as asas, acima das palmeiras. Uns negros maltrapilhos arrastam-se a pedir esmola, outros oferecem cinzeiros de madeira e objectos esculpidos. Uns sujeitos brancos e sebentos trocam escudos por angolares com a taxa acrescida de 12%. Os brancos aqui, de patilhas e camisas transparentes, têm todos aspecto de vendedores de automóveis e de taxistas. As mulheres brancas andam excessivamente bem vestidas e as jovens mulatas são lindas de morrer. Somos rodeados por pretitos, descalços nesta terra poeirenta e vermelha que mais parece barro, com cachos de enormes bananas ao preço da chuva.
E assim terminou esta viagem, ancorando neste Brasil africano chamado Angola.

quinta-feira, setembro 21, 2006

RETALHOS - A Viagem (III)

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Quando se deixou para trás Lisboa e posteriormente a Ilha da Madeira ficou também muito de nós e os melhores anos das nossas vidas. As saudades são já indescritíveis e uma solidão enorme invade-nos. Os soldados lá se acantonam pelo convés e à sombra das baleeiras tentam combater esta ociosidade aliada ao stress de uma viagem para a guerra, mas uma melancolia sem remédio domina-os.
Nos tempos mornos da viagem tínhamos por companhia um mar de água, cuja cor se confundia com um céu de chumbo quente. O sul confundia-se com a guerra e os militares confundiam-se com a família. As memórias de vinte anos, destes rapazes feitos homens, vinham novamente ao pensamento. O Fugitivo, a Lassie, o Robin dos Bosques e o Zorro (séries da televisão) confundiam-se com guerrilheiros. As brincadeiras ao pião e ao espeto confundiam-se com o jogo da lerpa, e essas brincadeiras de crianças confundiam-se agora com a contenda que nos esperava.
Lembro-me do meu primeiro pião de bucho que se confunde também com o meu primeiro roubo. Os piões alinhadinhos na vertical e pendurados numa corda estavam ali como a desafiar-me e eu não resisti: fui ao último e zás… Passados uns minutos já a minha velhota tinha sido avisada. Levou-me pelas orelhas até devolver o pião na drogaria, tudo isto tendo como testemunha o velhinho mercado municipal. E foi precisamente nesse local que acabou por nascer o maior aborto urbanístico (prédio do Coutinho) que há memória em Viana do Castelo. Finalmente, passados trinta anos, está prestes a ser demolido corrigindo e despoluindo o horizonte desta cidade.
Estava eu absorvido pela saudade e divagando pelas minhas memórias quando alguém grita à porta do camarote:
“- Há porrada junto ao cinema e acho que é com os Comandos.”
Quase ninguém se mexeu nem pestanejou demonstrando total indiferença pelos que se entretinham a jogar à galheta. Como eu também não me mexi, pois estava observando a lerpa, algum esperto me alertou:
“- Oh Marques, não és tu que estás de cabo dia? Parece que temos malta nossa envolvida.”
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continua

quinta-feira, setembro 14, 2006

RETALHOS - A Viagem (II)

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Aos praças, como eu, e aos milicianos, a todos era imposta a guerra. Em alternativa tínhamos a deserção que tinha como consequências nunca mais poder pisar solo pátrio e ter de deixar para trás as famílias, cuja maioria era sustentada com os nossos pobres salários. A Polícia Politica (PIDE/GDS) a rondar as casas de cada um, incomodando as pobres famílias mercê dos bufos que, a troco de uns miseráveis tostões, informavam a PIDE de tudo o que lhes parecia suspeito. Com estes condicionalismos, num país em ditadura, só nos restava dizer presente e irmos para a guerra.
Não era uma questão de patriotismo, heroísmo ou cobardia, mas simplesmente os condicionalismos do país.
A vida a bordo de um navio com mais de 3000 militares alojados, cuja lotação em condições normais era cerca de metade, rapidamente se transforma em rotina e cansaço.
O Martins, o magrinho, sempre interessadíssimo pelos pormenores nunca tendo estado tão perto de tanta coisa desconhecida, fazia as suas habituais visitas ao interior do navio e não se cansava de dizer:
“- É espantoso o número de coisas que não sabia e que não se vêem do lado de fora. Estes barcos têm de tudo, sabiam?”
Ao fim do segundo dia a bordo, pelo meio da tarde, avistava-se pela primeira vez a Ilha da Madeira sobre um céu quente, a beleza de um postal ilustrado. Tinha aproveitado para escrever umas cartas para casa, ainda a bordo, pois tinham-nos dito que sairíamos por algumas horas e poderíamos enviá-las da Madeira. Os mais afoitos saíram até onde lhes era permitido, o cais. Parece que tinham medo que alguém, à última da hora, pensasse em fugir à guerra. A maioria nem saiu do barco debruçando-se sobre a borda falsa do navio vendo e deliciando-se com aquela beleza para nós nunca vista.
Tocou a sirene do navio, subiu-se o portaló e depois da contagem do pessoal, o Vera Cruz arrancou em direcção à guerra prometida. Um navio cheio de milhares de jovens feitos homens à força que nem tiveram tempo de o ser, jovens feitos homens para matar, sem tempo para pensar o seu futuro, sem outra liberdade que não a de tentarem cumprir o seu destino programado por outros.
Os militares têm sempre como referência a disciplina e a hierarquia. Nesta viagem pelos mares do atlântico, por ter o número mais antigo entre os meus companheiros de armas, acabo por ficar por eles responsável, como cabo dia, num dos nove dias da viagem.
Nesta viagem rapidamente se instalou a rotina. As noites eram o prolongamento dos dias de batota onde a lerpa e a vermelhinha pontificavam. O “vício” era tal que os mais embrenhados no jogo raramente conseguiam ir tomar o pequeno-almoço. Eu, como tantos outros, não falhava a este “requinte” que nos era servido pelas sete da manhã, hora a que a lerpa ainda não tinha acabado para muita boa gente. Ocupávamos as restantes horas do dia com as idas ao bar e ao cinema que funcionava na coberta superior, para além das refeições que nos eram servidas em pratos ensaiando umas valsas que só os rebordos das mesas evitavam males maiores.
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continua

domingo, setembro 10, 2006

RETALHOS - A Viagem

O VERA CRUZ apesar de ser um navio adaptado a transporte de tropas ainda mantinha as suas linhas de concepção extremamente avançada para a época. Foi o primeiro verdadeiro paquete Português, pois todos os navios de passageiros usados anteriormente se classificavam como unidades mistas, pela grande quantidade de carga transportada a par dos passageiros. Nos pisos superiores alojavam-se os oficiais. Acima da linha do convés, coabitavam os sargentos dos diversos ramos e os militares da força aérea bem instalados, em camarotes triplos. Sentíamo-nos uns privilegiados pois as condições acima da linha do convés eram ainda excelentes.
Nos porões, a carga, neste caso os soldados do exército, foi alojada e dormia em beliches triplos. As condições de higiene rapidamente se degradaram transformando os porões em autênticos “bordéis” de imundice e maus cheiros (embora os soldados não tivessem culpa nenhuma, coitados!). Assim, muitos soldados tiveram de vir dormir para a proa do navio ou estenderem-se pelo chão como deserdados da sorte e não como cidadãos enviados ao serviço da pátria.
Quando se deixaram de ouvir os gritos lancinantes de quem em terra via partir os seus filhos para a guerra, sentimo-nos escoltados por algo maravilhoso e de grande satisfação para toda a gente. Era a primeira vez que tínhamos o privilégio de ver golfinhos. Toda a gente ia à borda contemplar este espectáculo único que se prolongou até ao fim da tarde. Que beleza!!!
A partir do início da década de 70, tudo se complicou para a já pequena população de golfinhos. A poluição do rio, cada vez mais preocupante, e a construção das pontes sobre o Tejo, contaminaram toda a cadeia alimentar. O crescente tráfego marítimo e a não existência de normas ambientais e de conduta na observação destes animais, acabaram por dizimar toda esta população.
Com a primeira noite vieram os primeiros enjoos com excepção para a tripulação e para os militares profissionais. Para estes últimos a guerra era só mais uma comissão de serviço advindo daí mais uma promoção, para alindar os seus ombros, subir na carreira e ganhar mais uns cobres. Só o Fiúza, o pescador, é que estava como peixe na água. Eu como antes trabalhava nuns estaleiros de construção naval, já vinha também um pouco habituado.
Todos os outros viram-se de repente no meio do mar, como prisioneiros do destino comandando pelo leme do deus Ares, conhecido como Marte o deus da guerra com milhares de Phobos e outros tantos Deimos, os seus filhos. Segundo a mitologia, Marte teve dois filhos com Vénus (a deusa do amor e o planeta mais bonito visível, a olho nu, perto do anoitecer ou do amanhecer) Phobos e Deimos (o Medo e o Terror).
Anoitecia rapidamente. Olhando em frente, mal se avistava o horizonte. Os tons vermelhos, como Marte, sugeriam sangue e este, por sua vez, conflitos e guerras. Não é de admirar que o planeta vermelho fosse associado a uma divindade considerada a zeladora do reino dos mortos e o deus da guerra.
Tanto de um lado como de outro não havia sinais de terra. Estávamos sós, completamente abandonados no meio do oceano Atlântico.
Bem dizia o Ramos nas suas tiradas sempre cáusticas:
“- Desta vez concordo! Gosto muito de ter os pés assentes em terra firme”.
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Continua

quinta-feira, setembro 07, 2006

Avô, quantos anos tem?

Uma tarde um neto conversava com o seu avô sobre os acontecimentos actuais.
Então, de repente, ele perguntou: Quantos anos tem, avô?
E o avô respondeu:
-Bem, deixa-me pensar um momento...
Nasci antes da televisão, das vacinas contra a polio, das comidas congeladas, da fotocopiadora, das lentes de contacto e da pílula anticoncepcional. Não existiam os radares, os cartões de crédito, os raios laser nem os patins em linha.
Não se tinha inventado o ar condicionado, a lavadora, as secadoras (as roupas simplesmente secavam ao vento).
O homem não tinha chegado à lua, "Gay" era uma palavra inglesa que significava uma pessoa contente, alegre e divertida, não homossexual.
Das lésbicas, nunca tínhamos ouvido falar e os rapazes não usavam piercings. Nasci antes do computador, das duplas carreiras universitárias e das terapias de grupo. Até completar 25 anos, chamava a cada homem "senhor" e a cada mulher "senhora" ou "senhorita".Nos meus tempos a virgindade não produzia cancro. Ensinaram-nos a diferenciar o bem do mal, a sermos responsáveis pelos nossos actos. Acreditávamos que "comida rápida" era o que a gente comia quando estávamos com pressa.
Ter um bom relacionamento, era darmo-nos bem com os primos e com os amigos. Tempo compartilhado, significava que a família compartilhava as férias juntos. Não se conhecia telefones sem fio e muito menos os telemóveis.
Nunca tínhamos ouvido falar de música estereofónica, rádios FM, Fitas cassetes, CDs, DVDs, máquinas de escrever eléctricas, calculadoras (nem as mecânicas quanto mais as portáteis). "Notebook" era um livrete de anotações.
Aos relógios dava-se corda dia a dia. Não existia nada digital, nem os relógios nem os indicadores com números luminosos dos marcadores de jogos, nem as máquinas. Falando de máquinas, não existiam as cafeteiras automáticas, os fornos micro-ondas nem os rádio-relógios-despertadores. Para não falar dos videocassetes, ou das máquinas de filmar de vídeo. As fotos não eram instantâneas nem coloridas. Só existiam a branco e preto e a sua revelação demorava mais de três dias. As de cores não existiam e quando apareceram, a sua revelação era muito cara e demorada.
Se lêssemos "Made in Japan", não se considerava de má qualidade e não existia "Made in Korea", nem "Made in Taiwan", nem "Made in China".
Não se ouvia falar de "Pizza Hut" ou "McDonald's", nem de café instantâneo. Havia casas onde se comprava coisas por 5 e 10 centavos. Os gelados, as passagens de autocarro e os refrigerantes, tudo custava 10 centavos.
No meu tempo, "erva" era algo que se cortava e não se fumava. "Hardware" era uma ferramenta e "software" não exista.
Fomos a última geração que acreditou que uma senhora precisava de maridopara ter um filho.
- Agora diga-me quantos anos acha que tenho?
- Hiii!!!... Avô. Mais de 200! Disse o neto!
- Não, querido. Somente 57!

terça-feira, setembro 05, 2006

Ao fim de 33 anos... um reencontro


Quando São João da Pesqueira comemora os 750 Anos da Confirmação do Foral de D. Afonso III e simultaneamente 725 anos da atribuição da Carta de Feira Franca, verifica-se desde logo a importância que os vários monarcas foram dando ao concelho incentivando o seu desenvolvimento económico.
O mercador que por aqui passava, o agricultor que aqui vende os bens da terra, o meirinho que cobrava os impostos, o alcaide como figura do poder central são de alguma forma alguns dos protagonistas desta feira da Pesqueira medieval.
Consciente deste passado que por vezes se encontra muito presente, foi neste preciso dia de 1 de Setembro de 2006 e passados 725 anos , que encontrei mais um Irmão da Guerra, o nosso 1º cabo pára-quedista enfermeiro Manuel Lauro
Há mais de 30 anos, sofreu comigo as agruras da guerra em Angola, pois para além de ser um combatente ainda tinha a nobre missão de tratar dos feridos e estropiados da guerra. Agora vestido com a pele de feirante lá vai ganhando a vida de um forma digna.
Um abraço para ti amigo Lauro.