domingo, setembro 10, 2006

RETALHOS - A Viagem

O VERA CRUZ apesar de ser um navio adaptado a transporte de tropas ainda mantinha as suas linhas de concepção extremamente avançada para a época. Foi o primeiro verdadeiro paquete Português, pois todos os navios de passageiros usados anteriormente se classificavam como unidades mistas, pela grande quantidade de carga transportada a par dos passageiros. Nos pisos superiores alojavam-se os oficiais. Acima da linha do convés, coabitavam os sargentos dos diversos ramos e os militares da força aérea bem instalados, em camarotes triplos. Sentíamo-nos uns privilegiados pois as condições acima da linha do convés eram ainda excelentes.
Nos porões, a carga, neste caso os soldados do exército, foi alojada e dormia em beliches triplos. As condições de higiene rapidamente se degradaram transformando os porões em autênticos “bordéis” de imundice e maus cheiros (embora os soldados não tivessem culpa nenhuma, coitados!). Assim, muitos soldados tiveram de vir dormir para a proa do navio ou estenderem-se pelo chão como deserdados da sorte e não como cidadãos enviados ao serviço da pátria.
Quando se deixaram de ouvir os gritos lancinantes de quem em terra via partir os seus filhos para a guerra, sentimo-nos escoltados por algo maravilhoso e de grande satisfação para toda a gente. Era a primeira vez que tínhamos o privilégio de ver golfinhos. Toda a gente ia à borda contemplar este espectáculo único que se prolongou até ao fim da tarde. Que beleza!!!
A partir do início da década de 70, tudo se complicou para a já pequena população de golfinhos. A poluição do rio, cada vez mais preocupante, e a construção das pontes sobre o Tejo, contaminaram toda a cadeia alimentar. O crescente tráfego marítimo e a não existência de normas ambientais e de conduta na observação destes animais, acabaram por dizimar toda esta população.
Com a primeira noite vieram os primeiros enjoos com excepção para a tripulação e para os militares profissionais. Para estes últimos a guerra era só mais uma comissão de serviço advindo daí mais uma promoção, para alindar os seus ombros, subir na carreira e ganhar mais uns cobres. Só o Fiúza, o pescador, é que estava como peixe na água. Eu como antes trabalhava nuns estaleiros de construção naval, já vinha também um pouco habituado.
Todos os outros viram-se de repente no meio do mar, como prisioneiros do destino comandando pelo leme do deus Ares, conhecido como Marte o deus da guerra com milhares de Phobos e outros tantos Deimos, os seus filhos. Segundo a mitologia, Marte teve dois filhos com Vénus (a deusa do amor e o planeta mais bonito visível, a olho nu, perto do anoitecer ou do amanhecer) Phobos e Deimos (o Medo e o Terror).
Anoitecia rapidamente. Olhando em frente, mal se avistava o horizonte. Os tons vermelhos, como Marte, sugeriam sangue e este, por sua vez, conflitos e guerras. Não é de admirar que o planeta vermelho fosse associado a uma divindade considerada a zeladora do reino dos mortos e o deus da guerra.
Tanto de um lado como de outro não havia sinais de terra. Estávamos sós, completamente abandonados no meio do oceano Atlântico.
Bem dizia o Ramos nas suas tiradas sempre cáusticas:
“- Desta vez concordo! Gosto muito de ter os pés assentes em terra firme”.
.../...
Continua

5 comentários:

Anónimo disse...

Olá amigo,
o meu pai também passou por essa aventura que nunca esquecerá!
Bjokitas grandes,
Lina

Gwendolyn Thompson disse...

Oi, Zé,
Beleza de texto, Nunca passei por este tipo de experiência mas foi impossível não sentí-la e vivê-la lendo o que escrevestes. E é bom ter esta noção do que aconteceu nesta ocasião para podermos avaliar a que condições adversas são levadas os seres humanos numa guerra. E o que para cada um representa tal evento. Também em meio a adversidade, momentos de contemplação e de beleza. É o que permeia a nossa realidade, felizmente!!! E prá completar pinceladas de Mitologia Grega. Deemais. Você é simplesmente genial.

beijos

May
Você

MGomes disse...

Passei por aqui e não pude partir sem ler este maravilhoso texto sobre a então partida para as antigas colónias portuguesas. Eu felizmente não passei por essses momentos trágicamente perturbadores que atingiam milhares e milhares de jovens portugueses, assim como as respectivas estruturas familiares. Mas recordo-me da aflição que pairava na minha aldeia, sempre que havia partida. E para alguns dos meus conterrâneos, infelizmente e devido aos efeitos da guerra, nunca chegou a haver chegada.
Um Abraço

Anónimo disse...

José Marques, quanto tempo era a viajem de barco, netes caso no Vera Cruz, até Angola ?

Anónimo disse...

Com o balançar do mar ,viam os enjôos naõ só orgânicos,como também da alma,com tantas angustias,incertezas,dor da separação.Ainda mais,em situações tão precárias.
Por instantes,a beleza da vida ,o esplendor do bailado dos golfinhos,o olhar meigo,faz se esquecer dos temores.
Deuses,qu e povoam histórias e vidas,o dificil caminhar.
Todos,querem terra firme,mesmo sabendo o que irão encontrar
Ligia