terça-feira, agosto 01, 2006

RETALHOS - O embarque para a guerra


Todos tínhamos já como companhia a “guia de marcha” para Angola. Sabíamos que dali a uns dias estaríamos, do outro lado do mar, precisamente onde 10 anos antes tinha rebentado a guerra. Esta viria a conduzir à libertação desastrosa de uma das últimas colónias em África.
Nessa noite, nada nos restava, senão despedirmo-nos de nós próprios, com o corpo a despegar-se da alma, pois os dez dias de licença de mobilização já estavam gozados, as despedidas da família e os abraços dos amigos já estavam consumados e até dos braços da namorada já nos tínhamos separado. Era como se o cérebro se diluísse e se separassem os neurónios, fica-se um destroço humano. Este desunir o corpo da alma cria em nós uma tristeza travestida de alegria pela acção das dezenas de cervejas que se emborcam tingindo o espírito de cada soldado.
Nada nem ninguém conseguiria tingir por muitas horas este apocalipse que se apoderava de nós, onde o álcool só conseguia preservar por algumas horas este estado de falsa alegria que nos levava a coisas impensáveis.
Como a querer prolongar os santos populares, engalanaram-se as camaratas, de cama a cama, como rolos de papel higiénico áspero em consonância com o que fizeram de nós. Muitos, já bem bebidos, a incomodar os soldados que por cá ficavam a ultimar a sua preparação militar. Algumas escaramuças foram inevitáveis e as cervejas que nos acompanhavam tiravam-nos o discernimento e o bom senso. Os soldados precisavam de descansar porque para eles o dia seguinte, era mais uma preparação dura e infernal que os esperava e não se compadecia com os sinistros festejos dos mobilizados.
Já a madrugada ia alta e ainda se viam espalhados pelo campo de futebol que ficava quase paredes-meias com a camarata, muitos corpos vomitados, outros tantos sonolentos a acordar para a vida novamente. O efeito de uma falsa alegria que lhes tingia a tristeza, passava rapidamente e como cordeirinhos regressavam às suas casernas para tentar dormir um pouco antes do despontar do dia. O corpo casava-se de novo com a alma e o discernimento voltava lentamente.
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3 comentários:

Gwendolyn Thompson disse...

Foi uma embriaguez mais do que benéfica, mas necessária, para superar o medo de encarar uma insanidade como o é a guerra.
Muito bem descrito, como vivestes estes momentos, já o disse de outras vezes que a sua alma vem em cada palavra, e nos leva a sentir junto com ela por que partilhas muito bem os sentimentos, conosco, seus leitores.

beijos

May

Anónimo disse...

Chega a hora do veredito ser consumado!Mesmo preparados por tanto tempo ,a sensação do chegar é terrivel.
Despedir dos lugares ,amigos,familia,e de si próprio sem saber o que esta reservado,é algo dilacerante , para alma e corpo.
A bebida, serve pelo menos num grito de socorro,tentar esquecer por momentos ,enganar e mesmo criar forças para o terrivel que está para vir. É necessário.
Mas esse tipo de embarque,um dia acabará.
Ligia

Anónimo disse...

A vida não é tudo o que queremos.... ai ai se fosse
beijo
gloria