quarta-feira, março 08, 2006

RETALHOS - Que o diabo leve a guerra II

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“ - O meu filho Zé morreu em Angola, foi dos primeiros a ir para o Ultramar” – passou o braço pelo cara como a limpar a malfadada lembrança.
“ – Quem devia ir para Angola eram “eles”. O Salazar já morreu, essa alma maldita, mas a guerra não acaba” – Enquanto falava, virava a cara para o chão, com medo que algum oficial a ouvisse.
Entreolhámo-nos meio envergonhados pelo “desplante” e a coragem que os anos e a sabedoria lhe abonavam.
“ - Que o diabo leve a guerra, meus filhos “ - Disse em jeito de despedida.
Fomos progredindo, sempre a corta mato, evitando os trilhos e caminhos, sempre de olhar atento a cada passo calcorreado e evitando os barulhos que podiam alertar a nossa presença, em terreno hostil. Ainda as palavras da anciã nos martelavam no ouvido, quando passou mesmo ali, pertinho, um coelho bravo, em autêntica correria alucinada, como sentindo que estavam a invadir o seu território, ou algum predador o ameaçava.
“- Um coelho!” – Exclamou em surdina o Covilhã, habituado a conviver com a serra e com as suas ovelhas, lá para o lado da Serra da Estrela.
Se não sentisse o olhar frio, recriminatório e penetrante do Cabo Veríssimo, por quem tínhamos todos imenso respeito pela forma como nos tratava e acompanhava desde o primeiro dia de instrução militar, o nosso pastor soldado tinha-se atirado ao pobre coelho que fugia espavorido.
De vez em quando, éramos invadidos pela perfumada carqueja e um cheiro oculto e penetrante a rosmaninho. Neste local, esquecido pelo tempo, existem, embrenhados na serra, numerosos vestígios da vida comunitária rural. Antigas pontes, velhas azenhas e levadas, açudes e fontes de mergulho fazem parte deste património riquíssimo que coabitava com os coelhos bravos, raposas, javalis e saca-rabos. Perdizes, tordos, gaios, milhafres e muitas outras aves completam o quadro de vida animal desta zona montanhosa de Vila de Rei, onde estávamos em treino militar.
Esta paisagem fresca, quase nos distraía da missão e dei comigo a pensar:
“- Vê-se logo que é tudo a fingir, na Guiné não há disto. A vida lá deve ser terrível, segundo o que dizem os que de lá vêm.
Depois de vários obstáculos naturais serem transpostos, quase sempre com a ajuda de cordas, lá fomos batendo toda aquela zona. De repente um rebentamento e… tudo desapareceu pelo chão dentro, num instante.
“- Foi o rebentamento de uma mina anti-pessoal.” - Disse alguém, como se não soubéssemos que as minas não eram para nós, mas para o treino ser o mais próximo da realidade.
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1 comentário:

Anónimo disse...

Realmente a Guerra deve ser algo muito doloroso para uma mãe. A tua já passou por isso e felizmente estás aqui para nos contar estes Retalhos. Estou feliz por saber que tens encontrado alguns camaradas teus...serve para compensar a amargura pela qual passaste. Sorte na tua busca ;-)

Um abraço