quinta-feira, novembro 03, 2005

RETALHOS - Não ouvem suas merdas I

Estávamos em Julho de 1969, quando o astronauta Neil Armstrong bem lá em cima na Lua, dizia aquela famosa frase: "Um pequeno passo para um homem, um salto gigantesco para a humanidade" e eu cá em baixo com os meus quase 20 anos e com um calor abrasador, vou, estupidamente, todo pimpão, a uma Junta Distrital (obrigatória) de Recrutamento Militar em Viana do Castelo.
Estávamos todos no átrio, rapazes de todas as classes e origens. Do rapaz pobre da urbe (como eu), ao filho de boas (ricas) famílias, que envergonhados por não pertencer à maioria (a pobreza abundava por estas regiões), refugiavam-se num canto. Dos vulgos saloios das aldeias e das serras, de ceroulas e chancas no verão, até ao filho do abastado agricultor.
Entrámos e um sargento do exército, logo berrou com aquela voz de suposto macho latino:
- Todos em bicha.
Claro, que já havia bichas nessa altura, mas o estúpido sargento, era assim que nos mandava enfileirar para sermos observados. Eu disse observados? Nada disso… era só para darmos o nome e alistarmo-nos, para a guerra colonial em África. Mas para quê observar? Se aproveitavam tudo e todos e ainda eram poucos.
E lá ia vociferando aquele animal fardado:
- Não ouvem suas merdas, é assim que querem ser militares?
Ouvem-se vozes em surdina entre os reguilas de pé descalço cá da urbe:
- Quem pensa que é esse filho da puta?
Ninguém teve a coragem de levantar a voz para aquela barriga fardada. Lá nos pesaram e mediram, sempre nus, não sei porquê, pois aproveitavam coxos e marrecos e tudo o que viesse à rede. Quem não quisesse, que fugisse de assalto para a França como tantos outros.
Depois de todos estes procedimentos, deram-nos uns impressos para preencher, se não quiséssemos ir para o exército, poderíamos escolher entre a Marinha e a Aeronáutica. O gajo afinal era nosso amigo! Até nos sugeria outras opções! Nada mais falso, o que eles queriam eram voluntários para tropas especializadas a que hoje vulgarmente chamamos: “Forças de Intervenção Rápida”.
Nessa altura ainda me martelava nos ouvidos “Não ouvem suas merdas? É assim que querem ser militares?” e foi com isso a zurzir nos ouvidos, que tomei a minha primeira grande decisão e disse para o Jorge meu colega de muitas lides desde a escola primária:
- Militar, como ele não vou ser de certeza, vamos para a marinha Jorge?
Respondeu-me de imediato o Jorge:
- Estás maluco, eu nem sei nadar!
E do outro lado do trio, disse o Fiúza o pescador:
- Vamos Zé? Eu vou inscrever-me para a Marinha.
Estas posições opostas, de dois amigos de infância, baralharam-me as contas, pois fazia intenção de irmos os três juntos para a tropa.
Então, sem lhes dizer a verdadeira razão, pois para mal dos meus pecados também não sabia nadar, disse:
- Nada disso, vamos para a Força Aérea e o culpado é aquela barriga fardada, não quero ir para o Exército.
E foi assim, que me inscrevi na Força Aérea. Como dentro desse ramo das forças armadas havia pára-quedismo e putos da rua como nós ávidos de aventura, vai daí… alistámo-nos, os três amigos, nas Forças Pára-quedistas.
Assim, tomei uma das minhas decisões mais importantes, a qual, iria marcar positivamente o resto da minha vida, quer pelo espírito de grupo e camaradagem, quer pelos ensinamentos que fui recolhendo ao longo de 40 meses de serviço militar, onde o lema era: “Que nunca por vencidos se conheçam”.
Mas a parte estúpida desta crónica, foi o que aconteceu a seguir. O grupo oriundo das aldeias e das serras, munindo-se de bombos e pandeiretas, foram tocando e bebendo ainda mais, pelas ruas como quem ia para uma festa muito importante, quando muitos deles acabaram por perecer na guerra.
Só passados uns bons meses, é que eu percebi e interiorizei o sentido e as motivações com que eles no fim da inspecção militar iam festejar pelas ruas, como o anunciar de uma festa ou romaria. Era provavelmente um grito de libertação, por saírem do mundo atrasado e das aldeias em que o ditador Salazar nos tinha deixado.
Sempre que me lembro disto, lembro-me, simultaneamente dos mortos da guerra, da carne para canhão em que eles se tornaram…
Descansem em paz.

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