quinta-feira, julho 20, 2006

RETALHOS - O povo não queria guerra (fim)

Desde puto, era ali no rio, a dois passos de casa, que ia apanhar caranguejos com uma corda, uma pedra e as entranhas do peixe pedidas às peixeiras do mercado. Precisamente no local onde viria a surgiu o pior atentado urbanístico vianense, um prédio de 12 andares. Hoje toda a população quer vê-lo em baixo para exemplo dos vindouros.
Queria transportar, na minha memória as mimosas do monte de Santa Luzia. Vale a pena subir ao topo do Monte de Santa Luzia (a cerca de três quilómetros do centro da cidade), a pé, de funicular ou de carro. Dele se desfruta uma das panorâmicas mais sublimes do planeta sobre a cidade, o rio e o mar. A cidade com as ruas e vielas sinuosas, largos e praças pitorescas, as suas muitas casas senhoriais e palacetes recordando a importância que adquiriu no século XV como porto de pesca e terra de onde saíram navios, marinheiros e navegadores para os grandes Descobrimentos portugueses do século XVI, iriam também comigo.
A Nossa Senhora da Agonia, celebrada em Agosto, atraindo multidões para assistirem à procissão, com o desfile das mulheres envergando os seus magníficos trajes típicos, os arraiais com muita música, bailes e fogo de artifício, além da tradicional bênção dos barcos de pesca seriam recordações que me acompanhariam sempre.
Já o poeta vianense, Pedro Homem de Melo, lia como quem canta este tema que Amália imortalizou:


Se o meu sangue não me engana
como engana a fantasia
havemos de ir a Viana
ó meu amor de algum dia
ó meu amor de algum dia
havemos de ir a Viana
se o meu sangue não me engana
havemos de ir a Viana.


Levei de tudo isto um pouco, para além dos abraços dos amigos, da paixão da namorada e do amor de minha mãe.
Em meados de Junho de 1971, só a Jorgelina, uma das minhas irmãs, acompanhou-me à estação dos caminhos-de-ferro. Depois de uma despedida com dor e já com muitas saudades, com o comboio a entrar na ponte metálica sobre o rio, dei comigo, com os olhos vidrados, a fixar o lado esquerdo da linha férrea, Queria ver, mais uma vez, a minha casa que ficava ali a algumas dezenas de metros.
É muito doloroso, uma mãe ver um filho partir para a guerra. E ali estava ela sozinha, vestida de preto, acenando-me o último adeus até onde a vista o permitia. Por fim, deitou ambas as mãos à cabeça, numa atitude de desespero, por ver partir alguém que ela brotou e criou e que agora via a guerra levar. Pela primeira vez uma lágrima correu teimosamente no meu rosto. Acenei com a alma tolhida. Levei comigo essa imagem que me acompanhou sempre na guerra e para além dela.

14 comentários:

Gwendolyn Thompson disse...

Gosto muito da forma intensa que escreves. Dá-me sempre a sensação de estar vivendo as situações, vendo os lugares... enfim é o que te faz realmente o grande e talentoso escritor. Vivi a grande sensação de perda da mãe... e a dor que só as mães sentem nestas ocasiões, porque soubestes descrever tão bem.

Beijos

May

Anónimo disse...

das recordaçoes da tua infância passando pelos maravilhosos sitios que ja tive oportunidade de visitar Santa Luzia e Viana com suas praças lindissimas e suas casas pitoresquas, isso tudo contado sempre duma maneira muito vibrante..e enfim essa despedida que devia ter sido "horrivel"..
momentos da vida inesquecivels, nao é Zé ?
um beijo

Fernando disse...

onde estava eu, pá? Não me lembro de nada.

José Marques disse...

Simpatia tua Gwendolyn,
São simples memórias de um simples cidadão, que viveu uma época algo conturbada.
Já não bastava a forma como as mães sofriam para alimentar e formar os seus filhos, para depois a guerra nos arrancar dos seus braços. Foram anos que me marcaram bastante e de alguma forma deixaram uma marca indelével na minha personalidade, pela forma intensa que foram vividos.

José Marques disse...

Helena,
É evidente que levamos sempre connosco, algo da nossa vivência e das nossas memórias vivas que são os cantinhos onde nascemos e crescemos. Coimo mãe saberás avaliar o sofrimento que é ver partir um filho para a guerra.
Obrigado pelo apoio

Anónimo disse...

A vida poética ,cheia de encantamento,vivenciada em todos os sentidos com sabor de alegria,num cenário de explendorosa beleza natural,é substituida por agonia ,desespero e incredualidade trazida pela guerra.Dilacera o coração e alma.,de todos .
A hora da partida,produz tanta dor como se arrancasse nossa alma.,sem saber quando e se encontraremos de novo.
Nada mais cruel para uma mãe ,ver seu filho ir ao encontro de terrores,sem poder fazer nada e esse filho no seu desespero ,suas angústias e sem poder amenizar o coração da mãe aflita.
Quando será que teremos a felidade de não ter mais guerra!
Ligia

José Marques disse...

Fernando,
É natural que não te lembres destas passagens com estes pormenores, pois eras bastante novo, mas a Jorgelina e a nossa Mãe, lembram-se com certeza.
Primeiro porque eram mais velhas e depois porque eram mulheres e como sabes as mulheres tem outra sensibilidade e sentido de protecção por quem lhe são queridos que nós homens.
Por outro lado mãe é mãe

José Marques disse...

Lígia,
Tão bem descreveste o sofrimento de uma mãe e de um filho que sentindo-se forte e preparado para os horrores da guerra e por outro lado impotente e frágil para acudir ao desespero da mãe
Obrigado pelo comentário

Anónimo disse...

Sabez Zé, todos anos quando regresso de férias, nao vou para a guerra, mas também é uma "partida" , e antes também me "emprenho" de tudo quanto gosto de Portugal, de sitios, de cheiros, cores e das pessoas que me sao queridas..e quando abalo de carro, também me vém essa lagrima..
um beijo

Anónimo disse...

Ólá, Bom dia..
Ao ler-te somos prejectados a uma tempo,a uma vida, que nunca vivemos, não conhecemos,mas por momentos estamos lá..

bj
Fátima

José Marques disse...

Fátima,
É reconfortante saber que quem lê os Retalhos, por momentos também se sentem parte da história e deste país que somos.
Obrigado

José Marques disse...

É verdade João
São vivências semelhantes, seja a época que for e seja a guerra que for.
Uma mãe sentir-se desventrada por lhe arrancarem os filhos já homens para uma guerra é demasiado doloroso para se poder descrever
Foste para a Guerra, muito antes de mim, para a mesma guerra em Angola e para o mesmo quartel. É natural que muito das minhas memórias, serão reminiscências comuns aos dois e a tantos outros que por África combateram.
Mas há que pôr cá para fora para os vindouros saibam pelo que passou esta geração.
Um abraço

Anónimo disse...

Realmente amigo... se dizer adeus a uma terriola qualquer é doloroso, dizer adeus a tanta beleza de Viana então deve ser bem mais.
Não tanta dor como dizer adeus aos que se ama... O certo é que estás de volta... e só eu sei o quanto isso é bom. Mais não seja para nos prendares com tantas memórias, com tantos feitos de beleza, os quais admiro demais
Um beijo, desta amiga gloria

José Marques disse...

É isso mesmo minha amiga Glória…
Tudo o que nos rodeia, faz parte de nós, das nossas raízes.
Mas uma mãe, é uma mãe e se a quem parte nestas circunstâncias já custa., tu como mãe saberás avaliar melhor que ninguém.
Obrigado pelo incentivo