quarta-feira, março 29, 2006

RETALHOS - Tudo o resto ficava para trás III

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Em 1961, quando rebentou a guerra de libertação de Angola, ficou célebre a frase proferida, do alto do seu cadeirão que o haveria de levar á morte, ordenando de forma peremptória, com o dedo espetado e de cabeça perdida “Para Angola e em força”. Era assim o tratamento dado aos melhores filhos que partiam para a guerra, como se fossem soldadinhos de chumbo e alinhadinhos como convinha ao velho regime. Regressavam mortos ou vivos, estropiados ou traumatizados, mutilados ou tolhidos. O resto ficou nas picadas. A Pátria não os reconhecia como filhos que deram o melhor da sua juventude, que foram arrancados dos seus empregos e das universidades comprometendo-lhes o futuro.
Nos Pára-quedistas a mobilização para a guerra começa muito antes do embarque, precisamente logo após o fim da instrução da especialidade militar, o curso de combate.
A partir dos últimos dias de Dezembro de 1970, já me considerava um mobilizado e vivi essa angústia. Estávamos na época natalícia e o pai natal reservava-nos uma prenda especial. Nos primeiros dias de Janeiro, de 1971, fomos informados solenemente, e em parada, que toda a companhia estava mobilizada para a Guiné. Essa notícia criou algum desconforto entre todos, não por irmos para a guerra, pois sabíamos isso desde o primeiro dia, mas por irmos bater com os costados na Guiné. A má nova foi-nos dada pelo Coronel Rafael Durão, comandante do Regimento de Caçadores Pára-quedistas, ladeado pelo capitão Valente dos Santos, que nos tinha ministrado o curso de pára-quedismo. Este último era um militar extraordinariamente exigente, mas com um pouco de loucura à mistura. Era de estatura pequena mas entroncado. Falava-se que tinha menos um pulmão, perdido algures em África, mas não se notava nada, muito pelo contrário, pois a sua vontade, energia e raça era a de um autêntico combatente pára-quedista fazendo dele um herói vivo e respeitado por todos. Do outro lado, ladeava o comandante, o Capitão Gomes, que nos tinha acabado de aplicar o Curso de Combate.
Com a companhia perfilada, começaram a ser distribuídos os “passaportes” de dez dias – era esse o termo que designava as autorizações de saída de fim-de-semana ou férias –.

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4 comentários:

Anónimo disse...

Olá Zé, vim desejar-te uma boa noite e agradecer o sensato comentário que deixaste...
Já focaste o tema guerra colonial várias vezes e acabo sempre por me retraír porque, confesso, me toca particularmente. Sou filha de alguém que lá esteve e está tudo dito...
Deixo-te um beijo

Anónimo disse...

Olá, boa noite!

Fazia algum tempo k não vinha por aki, mas nunca deixarei de vir, adoro ler os teus retalhos

Tenha um bom restinho de semana

Beijos

Silvia

Anónimo disse...

Mas o que me faz responder é falar-te do Coronel Valente dos Santos. Na verdade estivemos na Guiné na mesma altura. É verdade que perdeu um pulmão. Tem uma grande cicatriz no tronco. Foi um grande guerrilheiro. Gostava de andar no mato só com pretos. Agora anda meio "perdido" lá por Lisboa. Em anexo segue uma foto dele, tirada o ano passado em Tancos, no 23 de Maio.

Abraço

Anónimo disse...

Olá

Verifica-se pela leitura do texto, uma aversão à Guiné.

Eu não era dessa opinião e cheguei mesmo a tentar oferecer-me para ir para lá. Tal pretensão não foi aceite, pois tal, não era permitido aos milicianos.

Claro que todos nós "funcionavamos" pelo "diz-se, diz-se".

Hoje se analizarmos o número total dos n/mortos, verifica-se que na Guiné morreram 31,5%, em Angola 31% e em Moçambique 37,5%.

Se analizarmos os mortos em combate os numeros são identicos: Guiné - 31,5%, Angola - 29% e Moçambique 39,5%.

Se analizarmos por postos verifica-se que dos n/oficiais mortos em combate(10): 30% foram na Guiné, 50% foram em Angola e 20% em Moçambique.
Dos sargentos (24): 25% foram na Guiné, 37,5% foram em Angola e 37,5% foram em Moçambique.
Das praças (131): 33% foram na Guiné, 26% foram em Angola e 41% foram em Moçambique.

Não tenho dados sobre "perdas de botas", (que me aterrorizava) mas estou convencido, como estava na altura, que a Guiné era a que provocava menos baixas deste tipo, pois era uma guerra mais aberta.

Mas se considermarmos que no ano de 1970, morreram em instrução no RCP, 10 militares contra os 14 mortos em combate, (21 no total), no Ultramar...
E ninguém temia ir para Tancos!...

Bem... venha o diabo e escolha...

Claro que quando saiu a minha mobilização para Angola, fiquei todo feliz, pois julgava ir para Moçambique. Toda a gente dizia que Angola era para passar férias, só que na minha 1ª. operação tive um bate-papo a sério (foi a pior de todas - com 2 feridos na minha secção e em que despejei 5 carregadores) que me fez pensar, que se aquilo eram férias, preferia ir trabalhar para a estiva.

Claro que só de pensar em Luanda... não tenho dúvidas da minha escolha.

Sobre o "Cap. Portugal" (José Paulo Valente dos Santos), tudo o que se diga (pelo bem, ou pelo mal) é tudo pela metade.
Foi dos militares mais controversos.
Excelente no mato - (julgo que é o único militar branco, com 3 Cruzes de Guerra de 1ª. classe).
Mas no quartel...
-Rebentar a porta de armas com o BMW, devido ao sentinela demorar a abri-lo.
-As lutas de "carneirada", (a que assisti muitas vezes) quando ele estava de Oficial de Dia, no clube de sargentos, que batiam testa contra testa, após embalarem em corrida.
-A implicação constante com qualquer militar que se cruzasse ele (e então se não lhe batesse pala..)
-As makas que criava quase todos os fins de semana, em diversos bares civis (em que dava e levava) etc.

Há uma história com o Cap. Valente dos Santos que não sei se é do seu conhecimento a que acho muita graça.
No 11 de Março de 1975, estava o Gen. Spinola "estacionado" na BA3, junto ao portão (que estava aberto) em frente à porta de armas do RCP, quando é dada ordem ao Cap. Valente dos Santos para o ir prender. Ele arranca, numa Berliet, com o pessoal do piquete, sai do RCP e em vez de atravessar a estrada, corta à esquerda e percorre em ritmo lento aqueles 3 ou 4 quilometros até à de porta de armas da BA3, onde pede autorização para entrar afim de prender os oficiais estranhos à Unidade. Claroque quando chegou ao local onde estava o General, este já ia a caminho de Espanha.
Cumpriu zelosamente as ordens recebidas.

No entanto era (e julgo que continua a ser) uma pessoa sem maldade, sem guardar rancores e com quem dava prazer trabalhar.
Colaborei numa Instrução de Combate (IC 5/71) em que ele era o comandante e ainda que me fartasse de trabalhar pois os graduados do meu pelotão ficaram reduzidos a 2 (Alf. Chaves Gonçalves e eu), mas deu-me um gozo que ainda hoje recordo com prazer. E eu já estava mobilizado e atrazaram-me o embarque, em quase 2 semanas, para poder acabar o IC e nem os dez dias de férias gozei.
O sargento (Casal Martins) que eu ia substituir é que teve azar. Três dias antes da minha chegada "perdeu uma bota". (Bem, mas "ganhou" uma Cruz de Guerra, a Torre e Espada e a promoção a oficial - raio de compensação - mas a maior parte nada disto teve).

O Cap. Valente dos Santos, levou um tiro, na sua 1ª. comissão (em Angola) de que resultou a perda de parte de um pulmão, mas isso não obstava a que fosse o militar que conheci com melhor preparação fisica. Vi-lhe fazer, por mais de uma vez, mais de 80 flexões, batendo palmas aquando da elevação, em cima do palanque. Era o modo como ele se despedia, no final do dia dos militares do IC. E não continuava devido a que ninguém o aompanhar.

Passou à reserva como Capitão, logo a seguir ao 25 de Novembro, chateado com a "organização".
É formado em Psicologia (???) tendo tido consultório aberto em Torres Novas.
Este ano acho que foi promovido a coronel.

Deve haver um lapso, quando refere o Durão (outro militar fortemente polémico e cheio de histórias) como comandante do RCP. De 1962 até meados de 1971 era o (falecido) Cor. Robalo, que foi substituído (no meu tempo de RCP) pelo Cor. Fausto Marques. O Cor. Durão só depois do 25 de Abril é que assumiu o comando do RCP. Antes tinha estado na Guiné, (com o Gen. Spínola) a comandar o CAOP1, em Teixeira Pinto.

Um abraço
J. Martins