segunda-feira, janeiro 23, 2006

RETALHOS - A vermelhinha

Dos “duzentos paus” que a minha mãe me dava, por semana, e descontando os 110$00 que a CP cobrava por um bilhete militar de Viana ao Entroncamento (ida e volta), era com “noventa paus”, por semana, que eu tinha que me desenrascar para o tabaco, para as cartas e selos, e já pouco sobrava para as cervejolas.
Conhecia as dificuldades da vida, e era sabedor da luta, diária, que minha mãe, analfabeta, mas com um sentido arguto para o negócio, travava na sua loja de ferro-velho, para poder juntar “algum” para os dois filhos, que estavam na tropa, e, ambos, teimavam em vir a casa todos os fins-de-semana.
Nunca me aventurei em jogar à batota, por não ter muito jeito, por medo de perder o pouco pecúlio, mas também porque não tinha massa para arriscar. Alguns camaradas (sempre que o cabo ou sargento de dia, não estivesse por perto) aproveitavam as horas mortas para jogar à "lerpa" a dinheiro ou a tabaco. Os menos instruídos nessa arte jogavam ao montinho e os mais reguilas, das grandes cidades, mais habituados a levarem os outros por lorpas, arriscavam a jogar à vermelhinha. Eu arrisquei uma vez e serviu-me de emenda para toda a vida.
A vermelhinha era um jogo de cartas, da mais pura batota, e que ainda se vê, um pouco à socapa, por feiras e romarias depenando os incautos. Consistia em escolher uma dama de um naipe vermelho (daí o nome Vermelhinha), entre duas outras cartas de naipe preto. O jogador, batoteiro, mostrava previamente onde estava a dama e, depois de manipular as cartas com grande velocidade, convidava a vítima a tentar descobri-la. Para servir de isco havia sempre um cúmplice. Este jogava e acertava quase sempre e até nos “ajudava” quando o batoteiro fingia uma pequena distracção. Indicava-nos onde devíamos apostar, chamando-nos a atenção para o facto da dama estar marcada com uma pequena dobra num dos cantos. Ganhei a primeira vez, o que a mim, e a outros incautos, me levou a apostar mais forte de seguida. Mas joguei pouco.
O papalvo do Marques lá começou a jogar, tendo escolhido de imediato a carta marcada. Só que a carta marcada era afinal um Às de espadas! Como é que isto podia ter acontecido?
O Júlio Maia, colega mais antigo e por sinal também de Viana do Castelo, onde chegámos a trabalhar juntos numa fábrica de boinas, a CEDEMI – que para além de fornecer as boinas aos militares também era conhecida pela paixão e dedicação ao ciclismo - não chegou a ir á guerra, tendo se especializado na dobragem e manutenção dos pára-quedas, Na sua farda amarela imponente, depois de me deixar perder outra vez, chamou-me de lado e disse:
“- Zé, deixa-te dessas merdas, esse jogo é só para perder dinheiro. Ninguém ganha. Repara naquele “Pára”.” – Referindo-se de forma abreviada a um pára-quedista.
“ – Aquele tipo é o cúmplice, está ali para vos sacar a massa. Deixa-te de ser parvo e gasta mas é o dinheiro numas cervejolas que tem mais interesse. Anda daí, vamos ao bar. Esses gajos são uns filhos da puta, quando baterem com os cornos, em Angola, vão aprender o valor da amizade. Foge deles.” – disse o Maia.
E lá me explicou que naquele jogo era quase impossível alguém ganhar. Havia muitos truques que o batoteiro podia fazer, incluindo, naturalmente, o truque de, disfarçadamente, desmarcar o canto da dama, para marcar o de uma das outras cartas de naipe preto. O dito cúmplice do batoteiro, quando me deu a dica, sobre a marca, era mesmo no sentido de me “ajudar” a esvaziar os bolsos.
Aprendi a lição: no jogo da vida, ganha quem tiver amigos e cúmplices, que nem sempre são fáceis de descobrir. Na situação real de jogo, os ganhos afinal seriam partilhados com o amigo, que era, para efeitos de demonstração da «teoria da amizade» o seu verdadeiro cúmplice naquele jogo.
É evidente que, a maior parte das vezes, acabava tudo à batatada, num espírito “fraterno” em que ninguém, naquele quartel, se incomodava em acalmar os ânimos. Sempre achei que isso já fazia parte da instrução no sentido de nos brutalizar.

6 comentários:

Anónimo disse...

essa outra parte da guerra, ja a conhecia, e descrita da mesma maneira..a lerpa ainda continua a ser joagada por aqui mas associaçoes..a maior parte dos portugueses nascerem com o jogo das cartas nas maos..
é uma maneira de passar o tempo..
perguntei ao meu marido, que andou na guerra em Moçambique, de me contar um pouco como se passava la...ele me contou uma que gostei..o batalhao dele, para nao ter muitas chatices com os " turas" , deixavam sacos de feijao e outras denreias perto das casas deles, para eles nao ataquarem e para viverem em "harmonia"..
bjos

Anónimo disse...

Olá Zé!
Perdi uma boa parte das tuas narrativas, temo que tão depressa não lhe consiga retomar o "sabor" mas é algo que tenho agendado para quando possível, pois agora não me parece que mereças que eu comece a meio, nem o desejo. Quero sorver tudinho o que me parece teres andado a escrever com tanto aprumo e dedicação. Mais férias virão e com elas o tempo necessário para te dedicar...
Bom voltar aqui

Beijo amigo
Céu

Anónimo disse...

Meu amigo,

Estás cada vez melhor na escrita. Continua. Para além de exercitares a capacidade de redigir, agilizas a memória e, melhor que isso, exorcistas os fantasmas. Não disponho de muito tempo para grandes comentários, mas um destes dias converso contigo mais alargadamente.

Um grande abraço.

Anónimo disse...

OLá Zé...
Gostei desse "retalho" do texto integral...
O jogo é um vicio dispensavel...assim como todas as outras coisas que se denominem de "vicios"...
No fim quase tudo é dispensavel, menos as coisas indispensaveis...

bjo

Anónimo disse...

Oi Zé! Ainda não tive oportunidade de ler os Retalhos com atenção necessária, mas logo que possa passarei por lá para os ler com toda a atenção.

Anónimo disse...

Olá! Amei as fotos.Um trabalho de alguém muito detalhista.Perfeito!!! Seus comentários de caserna são muito bons.Demonstram que lhe serviram de uma grande experiência. Meus filhos também passaram por esta experiência,achei muito bom.Me identifiquei muito com a Sra. sua mãe economisando para pagar as passagens. Tôda mãe é igual.Aqui no Brasil e além mar.Um grande abraço