quinta-feira, novembro 24, 2005

RETALHOS - O famoso pente zero

Em 11 de Maio de 1970, apresentei-me em Tancos, no Regimento de Caçadores Pára-quedistas, para dar início à verdadeira aventura, que era o alistamento nas tropas pára-quedistas, frequentar a escola de recrutas e ir por aí adiante até conquistar a célebre boina verde e o brevete.
Chegámos por volta das cinco e meia da manhã, depois de uma viagem turbulenta de sete horas num comboio, procedente do norte, superlotado só com militares. Do fim-de-semana chegavam ao Entroncamento, de vários pontos do país, militares do Exército, da Força Aérea e os Pára-quedistas às centenas.
Um grupo de pára-quedistas esperava por nós à porta de armas, para nos acompanharem às instalações. Na entrada do quartel e de forma imponente lá estava a estátua que simbolizava um Pára-quedista vindo dos céus. Todos os militares eram obrigados a “bater a pala” em sinal de respeito, nós feitos “maçaricos”, limitámo-nos a olhar com respeito
Depois das apresentações a cerca de duas centenas de candidatos a recrutas, os três amigos foram colocados no 7º pelotão da 1ª Companhia. O facto de continuarmos sempre juntos tem uma explicação simples: quando pela primeira vez, em Tancos nos mandaram formar, ficámos juntos mais por instinto de defesa que outra coisa preconcebida e assim nos foi atribuída numeração seguida. Por via disso e durante 40 meses, andámos sempre próximos.
Formámos na parada. Distribuíram a cada um o kit de fardamento com 32 peças e logo o oficial destacado avisou:
- Senhores recrutas, acabou de vos ser distribuído um kit de fardamento, composto por 32 peças, para iniciarem a vossa vida militar. No fim do serviço militar, demore este o tempo que demorar, têm que devolver todas as peças para fazerem o respectivo espólio.
Depois de uma pausa continuou:
- O nosso Sargento vai acompanhar-vos e ajudar nas tarefas que se seguirão, deixo-vos com ele.
Notou-se algum agrado na forma educada como nos tratou o Capitão, isso era visível em cada um de nós.
- COMPANHIA!!! – soou o vozeirão do sargento. Isto está uma bandalheira, eu quero toda a gente agrupada por pelotões na próxima formatura.
- Têm meia hora para arrumar o kit que vos foi distribuído e regressarem já equipados de ténis, calção e camisola branca – gritou o sargento.
- Vamos depois fazer uma visitinha que se vai prolongar por toda a manhã.
Apesar de inebriados pela simpatia do capitão, veio o reverso e acordámos com este vozeirão do sargento, como que a alertar que a tropa começaria naquele momento.
E começara mesmo, acabaram as palavras simpáticas com que até aí sempre nos tinham brindado, a bandalheira na formatura como naquele dia, acabara a roupa civil no quartel e estava quase certo que também iria acabar o cabelo daqueles jovens cabeludos de uma época de ouro, a dos anos 60, que ainda hoje falam dela com evidente orgulho.
Numa tremenda confusão cerca de 200 recrutas rapidamente mudaram de roupa e como se veio a confirmar fomos ao nosso amigo e famoso pente zero.
Pela primeira vez na minha vida e em 5 minutos, vi-me despojado do cabelo até ao casco e o surpreendentemente já não nos reconhecíamos, mais parecíamos almas penadas. Apesar do tempo quente ou talvez por isso, sentia-se na barbearia um cheiro esquisito, era o cheiro a carecada que eu acabei por testemunhar ao longo de 40 meses mais de uma vintena de vezes.
Desta vez senti-me nu, espoliado e violentado com esta carecada higiénica. Senti-me mais frágil, mais despido e já com saudades do que tinha ficado para trás: os colegas de trabalho, os amigos e como não podia deixar de ser a namorada. Mal cheguei à caserna fui ao saco e desencantei um bloco para escrever para ela e para a famelga.

Aproveitei para tirar, no interior da caserna, umas fotos comigo já fardado de Mauser e capacete de guerra, mas com ar apalermado. Como se não fosse ter milhentas oportunidades de tirar esses retratos sem ser a fingir. Enfim… devia ser efeitos da anestesia que a carecada me provocou.
Na época dos cabelos à Beatles, o famoso pente zero produziu em nós efeitos anormais, ficámos todos estranhos e quase não falávamos uns com os outros. Aproveitei para ir dormir bem cedo, descansando das últimas 24 horas que quase me derrotaram, mas um pensamento não parou de martelar a minha cabeça desprotegida: “Lindo começo este!”.

1 comentário:

Anónimo disse...

Boa noite Zé...
Estou verdadeiramente deliciada com a tua crónica. É um relatro verídico que nos impele a querer saber a continuação, e a aguardar ansiosamente por ela!

Continua assim...
Bj
Barbara